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Neste domingo, 7 de agosto, a Lei Maria da Penha – Lei nº 11.340/2006 – completa 16 anos. A data traz à tona, anualmente, reflexões sobre os avanços alcançados pela sociedade, desde a publicação da norma, no combate à violência doméstica e familiar praticada contra meninas e mulheres e lança luz sobre os desafios que ainda precisam ser enfrentados para a redução dos casos de violação de direitos deste grupo nas esferas física, psicológica, moral, sexual e patrimonial. 

O 16º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado há pouco mais de um mês pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, trouxe dados alarmantes para a população mineira. Segundo o levantamento, Minas Gerais foi o estado com maior número de mortes de mulheres no ano passado – foram 154. Em comparação a 2020, o estado registrou três ocorrências a mais. E somente neste ano, de janeiro a maio, já foram contabilizados 147 feminicídios tentados ou consumados, segundo a Secretaria de Justiça e Segurança Pública de Minas Gerais. 

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O perfil traçado desse tipo de crime revela que 68,7%, das vítimas tinham entre 18 e 44 anos; 65,6% morreram dentro de casa; 62% eram negras; 81,7% foram mortas por companheiro ou ex-companheiro; e 14,4% por outro parente. 

Para a coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência contra a Mulher (CAO-VD) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), Patrícia Habkouk, os dados são muito preocupantes e convocam os órgãos de Estado e a sociedade civil a se debruçarem, com afinco, sobre a questão para discutir e implementar todas as medidas necessárias à transformação dessa realidade inaceitável. 

Entre os esforços mais recentes empenhados pelo MPMG para combater o problema, a promotora cita a implantação de Unidades de Prevenção à Criminalidade (UPC) com foco exclusivo no enfrentamento à violência contra a mulher em municípios do interior. O projeto, desenvolvido em parceria com a Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública, por meio da Subsecretaria de Prevenção à Criminalidade, com recursos do Fundo Especial do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (Funemp), já contemplou o município de Curvelo e, em breve, inaugurará novas unidades em Pouso Alegre e Barbacena. 

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"Em um estado da dimensão territorial de Minas Gerais, em que os serviços especializados são raros, é preciso fomentar a articulação em rede de todos os setores de atendimento às mulheres, destacando a importância de uma visão diferenciada para as causas que envolvem violência de gênero”, destaca Patrícia. Ela ressalta, ainda, a importância de se assegurar atendimento no eixo psicossocial para as mulheres e também estratégias que contemplem abordagens adequadas para os homens autores de violência. 

Violência sexual 

A promotora lembra que são diversos os tipos de violência suportados, todos os dias, por meninas e mulheres em todo o país em decorrência do machismo estrutural da sociedade brasileira e que, no caso dos crimes sexuais, os inúmeros desafios advêm, principalmente, dos tabus envolvendo o tema da sexualidade e também do histórico controle social sobre os corpos femininos.  “A violência sexual sempre foi invisibilizada. Se cometida dentro de casa, por parceiros ou ex-parceiros da vítima, era tida como natural, decorrente do dever da mulher de se submeter às práticas impostas; se praticada na rua, o olhar de recriminação recaía sobre a mulher, cuja roupa e comportamento eram os aspectos avaliados. É preciso lembrar que até pouquíssimo tempo atrás tínhamos as expressões discriminatórias ‘mulher honesta’ e ‘crimes contra os costumes’ no nosso Código Penal”, aponta.

Em 2021, de acordo com o 16º Anuário de Segurança Pública, foram notificados, no país, 66.020 estupros, sendo que 75,5% das vítimas eram vulneráveis, incapazes de consentir; 61,3% tinham até 13 anos; e em 79,6% dos casos o autor era conhecido da vítima. 

A coordenadora do Centro de Apoio as Promotorias de Justiça de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (CAODCA) do MPMG, Paola Domingues Botelho Reis de Nazareth, chama a atenção para o fato de, no Brasil, a violência sexual ser praticada predominantemente contra crianças e adolescentes. “É preciso tirar a violência sexual da invisibilidade. E a primeira coisa a ser feita é conscientizar a sociedade sobre a natureza hedionda desse tipo de violência e sobre a importância de denunciá-la”, adverte.  

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Conforme Paola, como os abusos sexuais geralmente acontecem em ambiente doméstico, com pessoas conhecidas, é necessário o envolvimento de toda a sociedade no enfrentamento ao problema. “Existe a necessidade de um controle social e familiar sobre a questão”, defende. 

A coordenadora do CAODCA também ressalta que a falta de educação sobre o sexo a crianças e adolescentes é um problema à garantia dos direitos. De acordo com ela, o diálogo e as campanhas educativas a respeito do assunto são fundamentais para que possíveis vítimas compreendam os abusos que eventualmente estejam sofrendo. “Muitas vezes, a violência sexual está no contexto de vida daquela pessoa, e ela não consegue ter a dimensão disso, até que seja esclarecida em uma palestra, por exemplo. A prevenção passa, necessariamente, pela educação”, assegura. 

Paola informa, ainda, que, a Lei 13.431/2017 instituiu um sistema de garantia de direitos para crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. A norma estabelece diretrizes para que a apuração dos crimes seja feita da forma menos revitimizante possível, de modo a garantir um atendimento humanizado às vítimas. “É preciso destacar, também, que, uma vez que a violência tenha acontecido, ainda é possível adotar medidas de profilaxia contra doenças e gravidez indesejada até 72h depois do crime. Se essas medidas não forem tomadas em tempo, existe, ainda, a garantia do aborto legal, previsto no Código Penal, e a possibilidade de entrega voluntária do bebê para adoção, prevista na Lei 135.09/2017”, esclarece. 

Aborto legal

De acordo com o artigo 128, II, do Código Penal Brasileiro, vítimas de estupro têm direito à realização de aborto por um médico. A lei estabelece que o procedimento seja precedido do consentimento da gestante ou, se ela for incapaz, de seu representante legal. Não exige, contudo, autorização judicial, não condiciona à apresentação de boletim de ocorrência ou comunicação judicial, nem limita o período gestacional. Basta, em tese, que a vítima procure uma unidade de saúde, passe por um acolhimento humanizado com equipe multidisciplinar, para, então, ser encaminhada ao atendimento médico.    

No entanto, o que muitas vezes acontece, segundo a promotora de Justiça Maria Constância Martins da Costa Alvim, da 2ª Promotoria de Justiça de Paracatu, é que esse atendimento não ocorre e é necessário acionar o Judiciário para que o direito seja efetivado. “Em Paracatu, temos observado a ocorrência de uma negativa tácita desse direito. Ninguém da rede de atendimento age para garanti-lo. Vítimas e seus representantes legais já relataram na Promotoria que, ao buscarem pelo atendimento, sentem-se como se estivessem pedindo um favor”, conta a promotora.   

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Segundo Maria Constância, a negativa de realização do aborto ou exigência de requisitos não previstos em lei configura hipótese de violência psicológica, fere o direto à saúde das mulheres, a integridade psicológica e a proibição de submissão a tortura ou a tratamento desumano ou degradante das mulheres e diversos compromissos internacionais dos quais o Brasil é signatário. “A autonomia das mulheres em situação de violência deve ser garantida, de acordo com a Política Nacional pelo Enfrentamento à violência contra as mulheres, não podendo suas decisões serem substituídas por agentes públicos ou profissionais de saúde”, frisa a representante do MPMG. 

Recomendação 

Buscando garantir o respeito aos direitos de meninas e mulheres vítimas de violência é que Maria Constância expediu, nesta semana, uma Recomendação ao município de Paracatu e ao Hospital Municipal para que garantam a pacientes que procurem o serviço de saúde a realização de procedimentos de interrupção da gestação nas hipóteses de aborto legal. Ela adverte, ainda, que as equipes responsáveis pelo atendimento às vítimas sejam qualificadas e cientificadas do sigilo profissional exigido por lei, sob pena de serem responsabilizadas.  

No final de julho, a promotora também solicitou à Justiça medida protetiva para garantir a realização de aborto decorrente de estupro em uma adolescente de 13 anos. Conforme Maria Constância, embora tenha passado por atendimento, a garota não foi nem mesmo submetida ao exame de gravidez, e mesmo após saber que estava grávida e manifestar-se pela interrupção da gestação, não houve o encaminhamento da adolescente para a realização do aborto. O pedido feito pela representante do MPMG foi acatado pela Justiça. 

Entrega voluntária 

A “entrega voluntária” do filho para a adoção, em procedimento assistido pela Justiça da Infância e da Juventude, é também um direito garantido pela lei a qualquer gestante ou mãe - independentemente de a gravidez ter decorrido de violência sexual. Ela está prevista na Lei 13.509/2017, chamada de “Lei da Adoção”, que alterou o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).  

De acordo com a promotora Paola Domingues, a possibilidade da entrega voluntária sempre existiu, mas a lei veio estabelecer os trâmites necessários para acelerar o encaminhamento da criança para a adoção e, assim, evitar que ela seja institucionalizada ou permaneça, por algum tempo, em uma família provisória, com a qual teria que romper os laços afetivos posteriormente.  

Conforme a promotora, o ideal é que o processo de escuta, pelos profissionais especializados, da mulher interessada no procedimento aconteça antes do parto, para que ela passe por um atendimento psicológico e possa ser esclarecida sobre as implicações da decisão. Após ser ouvida pela equipe multidisciplinar, as informações coletadas são encaminhadas ao juiz, que também a ouvirá. O ECA garante à menina ou mulher o direito do sigilo sobre o nascimento do bebê.  

De acordo com a coordenadora do CAODCA, a entrega voluntária é um procedimento importante, capaz de evitar que outras violências sejam praticadas contra a criança, como o abandono em locais diversos, omissão de cuidados, maus-tratos e até mesmo tentativas de infanticídio. “O principal objetivo do procedimento é proteger a criança”, pontua. 

A promotora Maria Constância, por sua vez, observa que no município de Paracatu houve, nos últimos anos, um aumento dos casos de gravidez entre garotas menores de 14 anos e que a Promotoria de Justiça, junto à rede de atendimento às crianças e adolescentes, tem buscado orientar as gestantes sobre a possibilidade da entrega voluntária. “Já tivemos duas entregas bem sucedidas neste ano. Apesar da lei que trata do procedimento ser de 2017, muitas pessoas ainda não sabem dessa possibilidade. Como fiscal da lei, o MP trabalha para garantir os direitos das mulheres e das crianças”.

Maria Constância lembra que, de acordo com o artigo 79 do ECA, é dever de todos prevenir a ocorrência de ameaça ou violação dos direitos da criança e do adolescente.  

 

 

 

 

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