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Nesta sexta-feira, 26 de junho, é lembrado o Dia Internacional de Apoio às Vítimas de Tortura. Instituída pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1997, a data reafirma a importância de se dar todo o apoio necessário às vítimas dessa prática criminosa e de combater a execução dos atos de tortura e de outras penas e tratamentos cruéis em todo o mundo.

O dia 26 de junho é marcado também pela entrada em vigor, em 1987, da Convenção Contra a Tortura e outras Penas ou Tratamentos Cruéis, Desumanos ou Degradantes, e pelo Decreto Presidencial que instituiu, em 2006, no Brasil, o Comitê Nacional para Prevenção e Combate à Tortura, formado por especialistas, Ministérios Públicos, órgãos do governo federal e organizações nacionais de Direitos Humanos.

De acordo com a Convenção Contra a Tortura, é considerado tortura todo ato pelo qual sofrimentos físicos ou mentais são causados intencionalmente a uma pessoa para obter dela ou de terceiros informações e confissões, bem como para intimidar, castigar, prevenir ou punir um ato que esta ou uma terceira pessoa cometeu ou suspeita-se que tenha cometido, ou ainda por qualquer outro motivo baseado em uma forma de discriminação.

A pesquisa “Percepções sobre a Tortura”, feita pela Anistia Internacional em 2016, revelou que Brasil e México são os países onde mais se teme a tortura: 80% dos entrevistados brasileiros têm medo de que, se detidos pela polícia, possam ser torturados e 83% defendem leis transparentes contra o crime, que garantam os direitos humanos. No mesmo sentido, o relatório da Human Rights Watch, de 2015, alertou que, em média, entre 2012 e 2014, foram recebidas seis denúncias de tortura a cada dia no Brasil, totalizando 5.431 casos. A maioria dos relatos de violência, 84%, foi reportada por pessoas que estavam em penitenciárias, delegacias e unidades de internação de jovens.

A ONU, por sua vez, denunciou, em 2017, que a impunidade em casos de tortura promovidos por agentes públicos contra pessoas presas é uma regra, e não exceção, no sistema prisional brasileiro.

O papel do Ministério Público
A coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos e Apoio Comunitário (CAO-DH) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), procuradora de Justiça Cláudia Spranger, ressalta que o Ministério Público brasileiro tem a missão constitucional de lutar contra a inaceitável prática da tortura. “O Ministério Público é o órgão que diretamente está imbuído do dever de avaliar a situação das pessoas que alegam ser vítimas de tortura e maus tratos, investigar os presumíveis casos de tortura e comunicar os fatos apurados ao Poder Judiciário ou outros órgãos com competência no domínio da investigação, conforme ratificado pelo Protocolo de Istambul”, expõe.

Nesse sentido, a fim de que o MP exerça de forma mais qualificada o dever que recebeu da Constituição Federal, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) aderiu, em agosto do ano passado, ao Sistema Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (SNPCT), comprometendo-se a cumprir objetivos como difundir informações e as experiências em relação ao combate à tortura; executar ações de prevenção a tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes; e seguir os princípios, os objetivos e as diretrizes do SNPCT, dispostos na Lei nº 12.847/2013, que instituiu o sistema.

Cláudia Spranger reforça que nenhuma circunstância justifica a tortura, e sua prática sistemática é um crime contra a humanidade. Segundo a procuradora, resultam destes atos cruéis e desumanos não só danos ao bem-estar físico e mental da vítima, mas à sua personalidade e à sua dignidade humana. “É muito importante observar que a tortura vai além do aspecto físico. Estamos avançando na compressão de outras configurações do crime, como a psicológica e a econômica. De forma semelhante com o que ocorre com a violência doméstica, a tortura não se verifica apenas quando há mostras visíveis no corpo da vítima. Muitas vezes, mesmo quando ela é física, pode não ser evidenciada prontamente, como, em casos que já tivemos, de presos que perdem a audição em decorrência de atos de tortura. Daí a importância da escuta da vítima”, exemplifica.

O coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Conflitos Agrários (Caoca) do MPMG, procurador de Justiça Afonso Henrique de Miranda Teixeira, que foi o primeiro coordenador da Promotoria de Justiça Especializada de Defesa dos Direitos Humanos de Belo Horizonte, lamenta que a tortura ainda seja uma prática viva na sociedade brasileira, usada, recorrentemente, como medida de obtenção de confissões e de punição em delegacias, batalhões militares e penitenciárias. “Temos lutado há muitos anos contra a arbitrariedade policial, colocando a nossa vida em risco, muitas vezes. Avançamos muito, com a edição da Lei da Tortura em 1997, por exemplo, mas observamos com muita tristeza, no contexto atual, um recrudescimento dessas arbitrariedades e a banalização delas em alguns segmentos da sociedade, o que representa uma involução civilizatória e nos convoca a reelaborar a nossa atuação como instituição”.

O procurador lembra que a contestação de práticas cruéis e desumanas usadas por agentes do Estado tem ocorrido em várias partes do mundo, como pôde ser visto, recentemente, após o assassinato de George Floyd por sufocamento nos Estados Unidos. Na visão do procurador, no Brasil, a tortura é uma chaga, algo sistêmico que está encrustado na cultura. “Tortura-se para castigar e para obter prova, como se o Estado pudesse fazer isso. E uma parcela da sociedade, lamentavelmente, aprova essa prática, demonstrando que a nossa sociedade é arbitrária e violenta”.

Segundo Afonso Henrique, a violência praticada no campo muitas vezes se assemelha a práticas de tortura vistas na cidade. “A violência no campo também é histórica no país e ocorre de diversas formas. O Brasil não apenas deixa de fazer a reforma agrária, como também concorre para a concentração fundiária ao deixar seu aparelhamento repressivo à disposição de donos de imóveis que não cumprem sua função social”, critica.

O promotor de Justiça do Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco) de Uberlândia Thiago Ferraz de Oliveira, que por cerca de um ano atuou no controle externo da atividade policial na 6ª Promotoria de Justiça de Ituiutaba, concorda que exista uma questão estrutural relacionada à tortura na sociedade brasileira. De acordo com ele, a tortura tornou-se visível no país apenas no período da ditadura militar, embora já se fizesse presente desde o processo de colonização, recaindo sobre a população indígena e negra. “Atualmente, principalmente após a edição da lei de combate à tortura em 1997, há uma falsa sensação de que essa prática seja combatida de forma veemente. No entanto, ainda é possível vislumbrar, na sociedade, o caráter da desumanização, principalmente quando uma pessoa está sob o jugo da outra, ainda que em abordagens policiais, no controle da massa carcerária e até mesmo em salas secretas de segurança em supermercados”, aponta.

Desafios

De acordo com Cláudia Spranger, Afonso Henrique, Thiago Ferraz e com a promotora de Justiça Janaína Dauro, que atuou de 2008 a 2019 na Promotoria de Justiça de Defesa dos Direitos Humanos de Belo Horizonte, são muitos e complexos os desafios da atuação do MP no combate à tortura. A dificuldade de investigação deste tipo de crime apresenta-se, segundo eles, como o principal entrave, já que, na maioria das vezes, os atos são cometidos entre quatro paredes, em locais de difícil acesso, por alguém que tem poder, contra vítimas vulneráveis e na ausência de testemunhas. “Provar o nexo causal nesses casos é um grande desafio, porque a prova é muito complexa. A pessoa torturada, quase sempre, tem pendências com a justiça e, por isso, sua fala é minimizada. Quando o crime não é praticado por agente público, é, muitas vezes, cometido por traficantes, e existe um código de silêncio que não permite que as testemunhas se manifestem”, explica Cláudia.

O pouco valor dado à palavra da vítima e de pessoas envolvidas com a criminalidade, de uma maneira geral, é destacado pelos quatro membros do MPMG como uma grande barreira à apuração dos fatos. “A palavra dessas pessoas parece não servir para nada. Se a vítima faz parte da população carcerária, ninguém reconhece a prática como tortura, mas como lesão corporal”, critica Thiago Ferraz.

O promotor de Justiça recorda um caso em que atuou, no qual um preso foi torturado por mais de meia hora por agentes penitenciários. O fato foi confirmado pelos quarenta detentos que ocupavam a cela, ouvidos pessoalmente pelo promotor durante a investigação. Após a coleta das provas, que evidenciaram a prática de tortura, Thiago ofereceu à Justiça uma representação pedindo o afastamento dos agentes, o que foi negado em primeira instância, prevalecendo a palavra dos acusados, que negaram o crime, e não a das testemunhas. Em sede de recurso, a decisão foi revertida. No entanto, em recente julgamento do mérito de uma ação penal proposta, a Justiça não reconheceu como tortura o crime praticado pelos agentes. “O juiz entendeu que se tratava apenas de lesão corporal decorrente da abordagem feita na cela, embora todos os elementos colhidos demonstrassem a prática de tortura”, conta.

Janaína Dauro também diz ter atuado em muitos casos marcantes de tortura como promotora de defesa dos direitos humanos. Recorda, especialmente, o de um rapaz que ficou paraplégico após ser violentado por policiais. O homem, segundo ela, já tinha cometido alguns delitos. No dia dos fatos, havia usado drogas com um amigo e ido para um bar. No estabelecimento, ele e todos as outras pessoas que lá estavam foram abordados por uma guarnição da Polícia Militar. Porém, o rapaz foi levado para um aglomerado de Belo Horizonte e espancado. Depois, foi deixado no hospital com a alegação de ter cometido o crime de tráfico. Os médicos, segundo a promotora, acataram a versão dos policiais de que o rapaz havia tido uma overdose, embora não houvesse nada que provasse isso. “Não tinha sido feito exame toxicológico. Ele chegou ao hospital praticamente em coma, ficou paraplégico, teve várias lesões similares a queimadura na região íntima e sofreu danos mentais. A família só soube que ele estava no hospital dois ou três dias depois da tortura. Mas como a prova não foi bem feita, a denúncia também não ficou precisa e não conseguimos condenar os militares”, relata.

A promotora salienta que, nos crimes de tortura, as testemunhas dos fatos, em regra, não existem. “Esses são crimes praticados na clandestinidade ou acobertados por um esquema. Era muito comum ver casos de pessoas que eram levadas para a companhia da PM e que lá eram torturadas de diversas formas. Nesses casos, há testemunhas, mas que são companheiros de fardas dos agentes. São pessoas que não têm força para coibir a prática ou que são dolosamente coniventes”.

Janaína observa, ainda, que o medo das vítimas de tortura é muito grande e que o sistema de Justiça ainda tem pouco a oferecer a elas em termos de proteção e garantias. “Já presenciamos vítimas que relatavam fatos graves na nossa frente, mas que quando chegaram na audiência, ou elas não iam, desaparecendo; ou estavam presas, e o fato de estarem detidas pesavam contra o que sofreram; ou, muitas vezes, negavam ter sido torturadas ou minimizava a tortura”.

A promotora cita, também, entre os desafios para o combate a essas práticas desumanas, o “engessamento” do trabalho da maioria dos promotores que atuam primeiro na área criminal. “A gente vai se acostumando com o ritmo da promotoria criminal, que é intenso, volumoso e muito mecânico. Em geral, o promotor recebe os inquéritos prontos e se habitua a oferecer a denúncia com base apenas naquele pacote, que vem da Polícia”.

Porém, conforme Janaína, a atuação no controle externo da atividade policial e na defesa dos direitos humanos não pode ocorrer apenas com base nesse “pacote” que chega da Polícia Civil, porque, na avaliação dela, ele, geralmente, é muito insipiente. “Às vezes o crime prescreveu, ou a vítima não foi muito bem identificada”, complementa.

Segundo a promotora, a atuação na defesa dos direitos humanos exige uma mudança na ordem investigativa com a qual o promotor criminal está acostumado. “O autor, nesses crimes, normalmente é uma autoridade, da Polícia Militar ou da Polícia Civil. O réu é alguém com poder, e a vítima, em geral, pessoas envolvidas com o crime. É um perfil de vítima diferente, que, muitas vezes, vive num aglomerado, não tem a fala valorizada e que tem muito a perder se denunciar a tortura sofrida, porque sabe que, infelizmente, o sistema não dá proteção a ela”.



Caminhos
Para os procuradores e promotores de Justiça, o avanço no combate à tortura no país depende, em grande medida, da transformação da cultura investigativa, a começar pela apuração direta desses crimes pelo Ministério Público e pela maior valorização da palavra da vítima. “Precisamos fazer a nossa própria apuração. O MP está estruturado para isso. Hoje temos muitos recursos tecnológicos que no passado não tínhamos, como as câmeras de celulares, por exemplo. O que precisamos é refazer todo o processo de compreensão institucional sobre a forma de atuar nesses crimes. Além disso, não devemos relativizar a palavra da vítima, mas dar mais valor a ela diante da falta de testemunhas”.

O procurador Afonso Henrique frisa que é preciso dar às vítimas a possibilidade de falarem sobre a tortura sofrida sem serem perseguidas, para que, assim, seja possível buscar e responsabilizar os culpados.

Cláudia Spranger também reforça a importância do aprimoramento das investigações e da credibilidade conferida aos relatos das vítimas. “Precisamos de uma perícia mais forte no Brasil e de mais agilidade nas apurações. Não podemos deixar o tempo correr, porque um simples laudo no início da investigação pode ser suficiente para demonstrar não apenas o aspecto físico da tortura, mas também os danos psicológicos”, considera.

Na opinião de Janaína Dauro, o primeiro requisito para se avançar no enfrentamento da tortura é ter disposição para investigar. “É preciso ouvir as pessoas, porque se você não ouvir o que aquela vítima tem a dizer, você não consegue chegar a uma conclusão de que, apesar dos atos que ela pratica ou praticou, ela tem razão em algumas falas. É preciso, ainda, aprender os meandros do funcionamento das Polícias para reconstruirmos o quebra-cabeça dos crimes praticados. Temos, no MPMG, vários promotores que já desenvolveram essa expertise. É necessário que essa cultura seja transmitida para todos os membros”. 

Thiago Ferraz avalia, de igual forma, que o trabalho de combate à tortura reforça, a cada dia, a necessidade de reinvenção da atuação ministerial. Para ele, as mudanças virão a partir de atuações mais rápidas, de novas aberturas legislativas para a proteção da vítima de forma mais efetiva e da promoção de nossos estudos para transformar a mentalidade da sociedade e do próprio meio jurídico.


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26/06/2020

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