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Desde a chegada da pandemia do novo coronavírus ao Brasil, as notícias sobre o agravamento do quadro de violência doméstica no país têm ocupado espaço significativo no noticiário nacional. Tornou-se recorrente o uso da expressão “pandemia paralela” por parte dos profissionais que atuam na proteção da mulher para se referir ao problema, que, mesmo antes do distanciamento social, já mantinha o Brasil entre os cinco países que mais mata mulheres no mundo, com a inaceitável média de 13 feminicídios por dia.

A permanência maior da população dentro de casa lançou, contudo, ainda mais luzes sobre a violência praticada no âmbito doméstico e familiar. É neste contexto de ampliação dos olhares sobre a realidade das mulheres, no país e no mundo, que a Lei 11.340/2006 – a Lei Maria da Penha – completa 14 anos. Considerada uma das três melhores legislações do planeta pela Organização das Nações Unidas, ela foi publicada no dia 7 de agosto de 2006, trazendo muitos avanços para a sociedade brasileira, como a criação dos Juizados e Varas especializadas, as medidas protetivas de urgência, a criação de centros de atendimento integral e casas-abrigos para as mulheres e dependentes em situação de violência, o atendimento policial especializado para o público feminino em Delegacias de Atendimento à Mulher, entre outras medidas.

Ao reconhecer que a violência doméstica decorre, em grande medida, de um problema cultural – a desigualdade de gênero –, a lei estabeleceu, ainda, medidas de cunho educativo, como a criação de centros de educação e de reabilitação direcionados aos agressores, a promoção de estudos e pesquisas sobre o tema, a capacitação permanente dos profissionais que atuam na área quanto às questões de gênero e de raça ou etnia, a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana e o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher.

Se antes da pandemia, os profissionais que atuam na área já encontravam uma série de dificuldades para implementar a lei, passando pelo machismo estrutural, pelo desconhecimento de agentes políticos sobre a legislação e sua importância, pela incompreensão sobre o ciclo da violência, entre outros empecilhos, na atual conjuntura, os desafios tomaram proporções ainda maiores. É o que observa a coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (CAO-VD) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), promotora de Justiça Patrícia Habkouk. “Estamos vendo com lentes aumentadas as nossas deficiências no enfrentamento do problema e sendo convocados a nos unir nessa luta pela proteção das mulheres”, avalia.

De acordo com Patrícia, nos primeiros meses de pandemia, o sistema de justiça registrou queda no número de denúncias e de pedidos de medida protetiva de urgência em relação ao mesmo período do ano passado, em razão da dificuldade de acesso das mulheres aos órgãos competentes. Mas, a partir de maio, os números voltaram a subir. “O isolamento social, estabelecido como uma medida positiva do ponto de vista da saúde, trouxe também consequências negativas para as mulheres, como a dificuldade de acesso aos órgãos de proteção. Houve, ainda, um impacto gerado pela redução do atendimento pelos serviços especializados”, comenta.

Apesar desse impacto no funcionamento de alguns órgãos de proteção, segundo a promotora, nem o CAO-VD, nem as Promotorias de Justiça com atribuição na área suspenderam o trabalho em razão da pandemia. Pelo contrário, os promotores de Justiça foram desafiados a repensar, junto à sociedade, as formas de garantir acesso das mulheres aos mecanismos de proteção e a desenvolver novas atividades no âmbito virtual, como reuniões, capacitações, campanhas e palestras.

Denúncia virtual
Uma das inovações implementadas no período de distanciamento social foi o boletim de ocorrência virtual dos casos de violência doméstica, disponibilizado na plataforma da Delegacia Virtual da Polícia Civil de Minas Gerais. A medida é fruto de uma articulação do CAO-VD com a Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Assembleia Legislativa de Minas Gerais. “Possibilitar o acesso das mulheres a meios virtuais eletrônicos que permitam que a violência sofrida seja denunciada é o mínimo a ser feito. Para além dessa medida, é fundamental garantir o funcionamento dos mecanismos de proteção após a denúncia”, considera Patrícia.

Segundo a coordenadora, o MPMG tem atendido a todos os procedimentos judiciais que são encaminhados à instituição. Segue, também, realizando audiências virtuais, reuniões e promovendo, por todo o estado, campanhas destinadas a divulgar o boletim de ocorrência virtual e também a rede de atendimento à mulher, considerada ainda mais essencial neste momento.

Percepção sobre o enfrentamento à violência
Com o objetivo de otimizar o trabalho realizado pelo MPMG no enfrentamento à violência contra a mulher, principalmente no contexto dos novos desafios trazidos pela pandemia, o CAO-VD deu início, ainda, à realização de uma série de reuniões virtuais com promotoras e promotores em todas as regiões do estado, como parte de um trabalho mais amplo de diagnóstico da percepção desse grupo sobre o enfrentamento à violência contra a mulher. “A ideia é que a partir das respostas advindas de um questionário que enviamos a eles e dessas reuniões, possamos conhecer melhor a realidade de cada localidade e as principais demandas para que, de forma conjunta, possamos elaborar uma diretriz ainda mais efetiva de atuação institucional”, explica Patrícia.

Até o momento, já foram realizadas 16 reuniões com promotoras e promotores de Justiça das regiões Alto Paranaíba, Central e Triângulo Mineiro. As próximas reuniões contemplarão as demais regiões: Centro-Oeste, Zona da Mata, Rio Doce, Noroeste, Sul, Jequitinhonha/ Vale do Mucuri e Norte.

Conscientização e transformação cultural
O trabalho de conscientização social sobre a violência doméstica tem sido feito por meios diferenciados nos diversos municípios mineiros. Em Ipatinga, no Vale do Aço, por exemplo, a promotora de Justiça Marília Carvalho Bernardes tem focado no público estudantil, realizando palestras online em parceria com faculdades da região. “Sabemos que as lives alcançam apenas uma parte da população, mas percebemos que a conscientização se dá muito pelo pelo ‘boca a boca’ também. Como a violência doméstica é um problema cultural, precisamos dar uma atenção especial para os estudantes, para que eles passem a ter um novo olhar sobre as questões de gênero e colaborem nessa transformação disseminando as informações recebidas nos seus espaços de convivência”.

Marília avalia como importantes as iniciativas sociais para ajudar as mulheres a denunciarem a violência. No entanto, pondera que somente essas ações não são suficientes para proteger as vítimas. “É preciso pensar no depois. Qual o aparato disponível para atender essas mulheres depois da denúncia? Como vamos auxiliá-las emocionalmente, psicologicamente e até materialmente a saírem dos relacionamentos abusivos? Em muitos municípios, não temos esses serviços de apoio. Essa é uma questão de saúde pública, e enquanto não for tratada assim, as mulheres não estarão protegidas”.

A promotora lamenta que a Lei Maria da Penha e as questões relativas às mulheres ainda sejam tratadas como temas de menos importância por agentes políticos e por muitos integrantes de órgãos públicos. “Grande parte das dificuldades de implementação da lei vem daí”.

Rede de apoio
No município de Governador Valadares, no Vale do Rio do Doce, a pandemia também tem estimulado o desenvolvimento de novos projetos por parte do Grupo de Articulação da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (GAR), coordenado pelo MPMG. Um deles propõe a inclusão de vídeos explicativos sobre a violência doméstica na programação de aulas dos alunos da rede municipal de ensino. “Estamos trabalhando neste projeto junto à Secretaria Municipal de Educação. Acreditamos que, por meio desses vídeos, conseguiremos entrar nas famílias e atingir os adultos também”, explica a promotora de Justiça Carla Regina Duvanel, da 6ª Promotoria de Justiça de Governador Valadares.

Carla destaca a importância do trabalho articulado entre órgãos de proteção da mulher para o enfrentamento da violência doméstica. “Uma vez por mês, membros do GAR se reúnem para definir projetos e metas. Essa é uma integração fundamental. Mas, certamente, ainda falta muita estrutura para que os atores da rede cumpram o que propõe a Lei Maria da Penha. Concentrar toda a rede em um único local, para que a vítima não tenha que ficar indo de um lugar para o outro em busca de atendimento, ainda é um sonho”, expõe.

A busca pela implantação de um fluxo de atendimento à mulher, para se evitar a revitimização e dar mais efetividade às ações, também tem sido uma preocupação do promotor de Justiça Frederico Carvalho de Araújo, da 5ª Promotoria de Justiça de Alfenas, no Sul de Minas. De acordo com ele, a Promotoria e os outros órgãos de proteção à mulher atuantes na cidade têm trabalhado, na Comissão Municipal de Atendimento à Mulher, para definir esse fluxo. “É necessário estabelecer a porta de entrada e a porta de saída da mulher dentro desse sistema, definir quem vai direcioná-la, como será a sequência desse atendimento, para que ela receba proteção efetiva e não desanime. Estamos trabalhando dentro das dificuldades de cada órgão e tentando estabelecer algo que seja possível para todos”.

Frederico, que tem participado também de lives sobre violência doméstica, comenta sobre a importância de a sociedade e dos órgãos públicos conferirem visibilidade ao tema. “O feminicídio é uma morte anunciada, um crime que pode ser evitado. Precisamos fazer tudo o que está ao nosso alcance para dar o apoio necessário a essas mulheres, para que elas consigam sair da situação de risco e tenham suas vidas preservadas”.

De acordo com o promotor, trabalhar com o tema tem proporcionado a ele uma série de aprendizados importantes. “Atuar nessa área exige um contato direto e contínuo com a comunidade, que se esteja lado a lado na luta, e isso é muito enriquecedor. É um trabalho de formiguinhas, com certeza, mas, aos poucos, a gente começa a ver os resultados e vai se fortalecendo”, avalia.

Atendimento à família
No município de Paracatu, no Norte de Minas, as iniciativas de enfrentamento à violência doméstica também têm se diversificado. O projeto Paracatu Lar Família, que desde o ano passado vinha promovendo oficinas com homens e mulheres em situação de violência e palestras em escolas da cidade, precisou se reinventar em meio à pandemia.

Uma das novidades do período de quarentena foi a parceria firmada entre o projeto e a Polícia Civil, que permitiu a instalação, na delegacia, de televisores e aparelhos de DVD para a veiculação de vídeos educativos voltados aos homens, mulheres, crianças e adolescentes que comparecerem ao local e aguardam atendimento. Gravados por profissionais parceiros do projeto, os vídeos abordam temas como empatia, amor, carinho e visam à reconstrução dos valores e do respeito na convivência familiar, como explica a promotora de Justiça Maria Constância Martins da Costa, da 4ª Promotoria de Justiça de Paracatu. “É uma abordagem que busca atingir todos os envolvidos no ciclo de violência e dar início a um processo de reflexão sobre os comportamentos adotados no dia a dia”.

O projeto prevê também, para as próximas semanas, a produção de vídeos, voltados especialmente às crianças e adolescentes, para exibição em plataformas de ensino da cidade.

Maria Constância se alegra ao comentar sobre os resultados do Paracatu Lar Família no município, lembrando que, há cerca de três anos, a violência contra a mulher era tratada como crime de menor gravidade na cidade. Além disso, o município não contava com uma rede de proteção estruturada para combater o problema e muitos operadores do direito ainda apresentavam resistência às mudanças propostas pela Lei Maria da Penha. Hoje, de acordo com ela, a transformação é notória. “Todos nós crescemos com o projeto. Trouxemos o machismo, a violência contra os idosos e outros tantos problemas sociais para a pauta, percebendo o quanto as vulnerabilidades se acumulam. E hoje estamos atendendo a várias situações de vulnerabilidade. Tem sido muito transformador”.


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07/08/2020

 

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