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Jarbas Soares Júnior, procurador-geral de Justiça de Minas Gerais, Gregório Assagra de Almeida, procurador de Justiça e coordenador da Procuradoria de Justiça com atuação nos Tribunais Superiores do MPMG, e Alderico de Carvalho Junior, promotor de Justiça, coordenador da Unidade de Delitos contra a Vida da Procuradoria de Justiça com Atuação nos Tribunais Superiores do MPMG

O Supremo Tribunal Federal iniciará, em breve, o julgamento do Tema 1087, no qual se discute a extensão da soberania dos veredictos proferidos pelo Tribunal do Júri, instituição que é responsável pelo julgamento dos crimes dolosos contra a vida. Mais especificamente, a Corte definirá se o Ministério Público pode recorrer da decisão dos jurados que absolve o réu. O julgamento tem repercussão geral.

É inegável que o Tribunal do Júri, ao permitir a participação popular direta no Poder Judiciário, representa uma conquista civilizatória, sendo verdadeira garantia fundamental da sociedade brasileira, tanto é assim que a Constituição garante a soberania de suas decisões. No entanto, há quem defenda que esta soberania serviria apenas aos propósitos do réu e nunca aos propósitos da sociedade, com isso buscam proibir que o Ministério Público recorra até mesmo naqueles casos em que a absolvição é totalmente contrária à prova dos autos.

É dever do Ministério Público de Minas Gerais, porém, como autor do recurso paradigma, alertar para o risco de se legitimar a pena de morte e normalizar a vingança privada, caso se impeça a revisão da decisão absolutória que não encontre um mínimo de respaldo nas provas.

Crimes de sangue com traços de intolerância são reflexos da sociedade complexa, conflitiva e doente em que vivemos. Exemplos notórios se avolumam dia após dia. Lembremos que de um extremo a outro do país a violência mostra sua face sombria, tanto no Amazonas com os brutais assassinatos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips quanto no Rio de Janeiro, onde neste ano foi assassinado o congolês Moïse Kabagambe, agredido até a morte em um quiosque na Barra da Tijuca.

E se os Jurados nestes casos julgarem a vítima e não o réu? Importante perceber que aqueles que flertam com a intolerância acabam justificando a violência letal como uma escolha válida, desconstruindo a vítima como pessoa digna de proteção, afinal, “ela mereceu morrer”.

Foi a comoção internacional com a absolvição do mandante do assassinato da missionária Dorothy Stang um dos motes para acelerar a mudança legislativa que simplificou as perguntas feitas aos jurados, sobretudo com o objetivo de evitar decisões injustas. E hoje, 14 anos depois, é com tristeza que assistimos a tentativa de se utilizar daquela mudança justamente para enfraquecer a defesa da vida.

Aliás, não apenas nas armadilhas da intolerância estão os perigos de dar à soberania dos veredictos um caráter absoluto, mas também na influência externa que os jurados podem estar submetidos. No clássico da literatura política brasileira Coronelismo, Enxada e Voto, de Nunes Leal, já se alertava para o poder dos coronéis sobre os jurados, o que refletia na impunidade de seus capangas. Temos plenas condições de fazer um paralelo entre o coronelismo de outrora e o aumento da pressão exercida pelas organizações criminosas caso se admita como absoluta a absolvição desconectada da prova.

Admitir a soberania dos veredictos como ilimitada explica muito sobre como se utilizar da democracia contra ela própria. Soberania não é poder absoluto, mas o respeito à decisão dos Jurados quando pautada na prova, o resto é barbárie e proteção deficiente ao direito à vida.

Artigo originalmente publicado no site do jornal O Globo, em 22 de junho de 2022

Régua - Assinatura Cejor (atualizada)

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