Notícias - Criança e AdolescenteCombate à violência sexual contra crianças e adolescentes no ambiente digital exige cooperação entre instituições, afirmam especialistas
Seminário “A violência sexual contra crianças e adolescentes no ambiente digital”, promovido pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) apontou desafios para as diversas instituições públicas envolvidas na causa. Segundo especialistas, o tema é urgente e o debate deve envolver toda a sociedade
Desafiadora e urgente, a proteção a crianças e adolescentes contra abusos no ambiente digital é dever de toda a sociedade e exige instituições atuantes em rede, da saúde à Justiça e segurança pública, passando ainda pela educação. Esse foi, em linhas gerais, a tônica do seminário “A violência sexual contra crianças e adolescentes no ambiente digital”, promovido pelo Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) na última quinta-feira, 14 de maio, por meio do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Defesa da Criança e do Adolescente (CAO-DCA) em parceria com o governo de Minas Gerais. Com auditório cheio, o evento contou com a presença de policiais militares e civis, educadores, organizações da sociedade civil, pesquisadores, estudantes e integrantes do sistema de Justiça.
Durante a manhã, a coordenadora do CAO-DCA, Graciele de Rezende, abriu os trabalhos aludindo ao caso do estupro e assassinato brutal da menina Araceli, ocorrido no Espírito Santo em 1973. O julgamento não resultou em nenhuma punição, mas a data do crime, 18 de maio, ficou marcada como Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. “A brutalidade do crime que vitimou Araceli ainda é uma realidade bem próxima da infância brasileira”, lamentou, evocando números do Atlas da Violência, que relatam forte crescimento dos casos de abuso sexual contra pessoas abaixo de 18 anos. A publicação se baseia no Sistema de Informações de Agravos e Notificações (Sinan) do Ministério da Saúde.
A promotora de Justiça destacou ainda a subnotificação comum a este tipo de crime e lembrou o quanto esses delitos estão migrando para o ambiente virtual. “Além da subnotificação, características desse tipo de crime, muitos dos delitos praticados no ambiente virtual podem não ter sido computados, na medida em que sequer deixam vestígios e, portanto, não constariam dos registros do Ministério da Saúde. Mas nós [das instituições de Justiça e Segurança Pública] não temos como ignorar. A transformação digital da sociedade, embora traga inúmeros benefícios, também potencializa novas formas de crimes”, discursou a promotora de Justiça.
Denúncias
Palestrante da manhã, a coordenadora nacional da Unidade de Repressão aos Crimes Cibernéticos Relacionados ao Abuso Sexual Infantojuvenil da Polícia Federal, Rafaella Parca, comentou sobre a subnotificação e o acúmulo de denúncias. Segundo a delegada, apenas 10% dos crimes sexuais no ambiente digital chegam ao conhecimento das autoridades. “Ou seja, o número real é muito maior. Isso é bastante assustador”, destacou.
A policial apontou, por exemplo, que a subnotificação dos casos de estupros de meninos tende a ser maior que a de meninas por influência da cultura tradicional sexista, que trata o tema como tabu. Isso mascara os dados oficiais e aumenta ainda mais o desafio de se chegar aos criminosos. “É muito difícil para nós atuarmos, em termos de quantidade de casos que surgem. Por isso, criamos uma estratégia de cooperação entre polícias para aumentar a capilaridade de atuação, trazendo as polícias civis para o nosso lado. Junto com nossas metodologias e ferramentas, conseguimos tratar uma quantidade muito maior de casos”, defendeu.
Em complemento, a diretora de projetos especiais da organização SaferNet Brasil, Juliana Cunha, abordou o tema com um olhar relacionado ao acesso desmedido da internet por crianças e adolescentes. “Seja porque a criança sofreu violência fora da internet e foi produzida alguma imagem, seja porque, muitas vezes, crianças e adolescentes trocam imagens entre si, ou ainda porque essas imagens são usadas para produzir conteúdo com inteligência artificial, como imagens que simulam nudez. Esse é um problema que tem ganhado escala e urgência”, exemplificou.
Segundo a especialista, a SaferNet recebeu mais de 5 milhões de denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes na internet desde que iniciou a atuação, há 20 anos. “É um trabalho em que observamos um crescimento constante no número de denúncias. Tivemos um recorde há dois anos, especialmente em virtude do uso de inteligência artificial para a produção desse tipo de conteúdo [de pornografia infantil]”, alertou. Cunha destacou a importância do trabalho em rede para avançar no enfrentamento. “Temos um grande desafio, não só no âmbito da sociedade civil, mas especialmente em um contexto multissetorial, envolvendo agentes públicos e também empresas. Precisamos também preparar as forças policiais de investigação, porque esse tipo de crime apresenta desafios que vão além das fronteiras”, cobrou.
Escolas
Durante a tarde, foi realizada roda de conversa sobre “O papel da escola no acolhimento de uma revelação espontânea”. Para a secretária Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes, Pilar Lacerda, as intuições de ensino têm papel fundamental nesse tema, por ser um ambiente privilegiado para essa escuta, mas, para fazer de forma correta, precisam estar preparadas para ouvir esses relatos.
“Todos os profissionais têm de ser capacitados para o acolhimento de uma revelação espontânea. A escola tem de ser um espaço seguro, sensível, acessível e amigável para crianças e adolescentes”, disse. Para ela, essa escuta deve proteger a fala e a integridade emocional da criança e do adolescente. “Quem escuta, protege, não julga, não interroga, não expõe”, disse.
O relato foi corroborado pela coordenadora do CAO-DCA, Graciele de Rezende. Segundo ela, toda vez que a escola aborda o tema violência em sala de aula, aumentam os números de relatos. “Depois dessa discussão, é comum que a criança procure o profissional com quem tenha vínculo, e que acha que vai poder ajudá-la, para revelar uma situação de violência que ela ou a mãe estão vivenciando. Mas todos da escola precisam estar preparados para saber o que fazer com essa revelação espontânea”, disse.
Já a promotora de Justiça Giselle Ribeiro, do Centro de apoio Operacional às Promotorias de Justiça de Defesa da Educação (CAO-Educ), apresentou dados sobre violência sexual contra crianças e adolescentes. “São números estarrecedores”, disse. Segundo ela, no Brasil, sete crianças ou adolescentes são vítimas desse tipo de crime por hora. “Isso é o que sabemos, porque estima-se que nem 10% dos casos de abuso são notificados às autoridades”, disse. Para ela, a escola tem papel estratégico nesse combate à violência sexual tanto para encontrar sinais e acolher essas crianças e adolescentes, quanto para repassar as informações e fazer a articulação com os órgãos de proteção.
Essa subnotificação dos casos gera, segundo a promotora Ana Teresa, da Casa Lílian, vários problemas, tanto de acesso a direitos e cuidados pela vítima, quanto de responsabilização do agressor. Também é preciso interromper o ciclo de vitimizações. A primeira é quando o crime ocorre. “Mas existem outras que podem ser sentidas com maior ou igual intensidade, como a vitimização secundária, praticada pelos órgãos que deveriam atuar como rede de proteção, responsabilização e resposta. E a terciária, que é o julgamento social, que questiona a roupa da vítima, a sexualidade, o que a mãe estava fazendo naquele momento. Isso tudo pode influenciar negativamente nesses números, levando a subnotificação dos casos”, disse.
Em seguida, ocorreu roda de conversa voltada aos impactos dessa violência a partir de um olhar transdisciplinar na medicina. O tema foi discutido pela diretora estadual de Políticas para Crianças e Adolescentes da Sedese, Eliane Quaresma, pela pediatra e médica legista do Instituto Médico Legal (IML), Cristiani Regina dos Santos de Faria, e pelo psiquiatra da Infância e Adolescência e gestor do NeuroEduca, Felipe Guimarães.
O painel discutiu os sinais ligados à violência, como mudança de comportamento e isolamento, e as repercussões na saúde mental, além da estrutura estatal de acolhimento das vítimas nas regiões de Minas.
Em seguida, a juíza da Vara da Infância e Juventude do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, Vanessa Cavalieri, realizou a palestra de encerramento. Durante a abordagem, ela falou sobre ato infracional, a estrutura do estado para atuar na área, banco de dados sobre os casos envolvendo crianças e adolescentes no Rio de Janeiro e como enxerga o fenômeno. “Quando um adolescente comete um ato infracional e é levado a Vara de Infância, é porque toda a rede de proteção falhou com ele antes. É preciso de toda uma aldeia para criar uma criança”, disse.
Para a magistrada, toda a sociedade é responsável pela proteção das crianças “e quando um adolescente quebra as regras de convivência comunitária é porque todo mundo falhou: família, escola, estado, saúde. Foram muitos buracos na rede de proteção que o levaram até ali”, disse. Ela falou ainda sobre a onda de ataques ocorrida nas escolas do Rio, em 2023, e como ela atuou para equalizar os casos. A partir dali surgiu, segundo ela, um projeto de Justiça Restaurativa no âmbito escolar para enfrentar a violência escolar. O projeto ganhou o nome “Eu te vejo”. A iniciativa tem o objetivo de conscientizar escolas, famílias e sistema de Justiça sobre as causas da violência escolar, apontando estratégias de enfrentamento, sugerindo transformações no ambiente escolar para tornar o espaço mais respeitoso, acolhedor e inclusivo.
Confira a íntegra da transmissão do evento pelo TV MP:
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