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Nesta sexta-feira, 8 de março, Dia Internacional da Mulher, a jornada de luta das mulheres por igualdade e por uma vida livre de violência é tema de destaque em todo o mundo. Ao lado das conquistas obtidas, os obstáculos ainda enfrentados, cotidianamente, pela população feminina mobilizam debates e estimulam ações nos mais diversos setores da sociedade.  

Entre os vários instrumentos que transformaram a realidade de mulheres no mundo e que devem ser lembrados, um deles se sobressai, segundo a coordenadora do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Combate à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (CAO-VD) do Ministério Público de Minas Gerais (MPMG), promotora de Justiça Patrícia Habkouk. Trata-se da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, conhecida como Convenção de Belém do Pará.  

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Patrícia avalia que o tratado internacional, promulgado em 9 de junho de 1994 e ratificado pelo Brasil em 1995, foi fundamental no processo de evolução dos direitos das mulheres. “A Convenção de Belém do Pará define a violência contra a mulher, declara os direitos protegidos e aponta os deveres dos Estados-parte, além de criar mecanismos de proteção. Foi ela que reconheceu a violência contra as mulheres como violação de direitos humanos e serviu de fundamento para a condenação, do Brasil, no caso da Maria da Penha Fernandes, o que deu origem à edição da Lei 11.340/2006”, explica. 

Transformações 

A retirada, pela Lei Federal 11.106/2005, do termo mulher “honesta”, que adjetivava o sujeito passivo do crime de posse sexual mediante fraude, é mencionada por Patrícia como um dos avanços a serem destacados. De acordo com a promotora, a mesma legislação revogou também as hipóteses de extinção de punibilidade decorrentes do casamento do agente com a vítima e do casamento da vítima com terceiros, nesse crime, assim como os delitos de sedução e de adultério. 

Já em 2009, a Lei Federal 12.015 promoveu a substituição do Título VI da Parte Especial do Código Penal “Dos crimes contra os costumes” por “Dos crimes contra a dignidade sexual”, alterando substancialmente o crime de estupro, segundo a promotora.  

Outros exemplos citados por ela são a Lei 13.718/2018 que, entre outras causas, alterou para pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a dignidade sexual e a Lei 13.104/15, que estabeleceu a figura do feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, nominando a morte violenta de mulheres. 

Na lista de avanços, está, ainda, a decisão do Supremo Tribunal Federal que reconheceu, em fevereiro de 2021, a tese da legitima defesa da honra como contrária aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana, da proteção à vida e da igualdade de gênero. 

No âmbito do Direito de Família, a promotora lembra que o Código Civil de 2002, amparado nas regras da Constituição, deixou de considerar o homem o “chefe da sociedade conjugal”. Já com a Emenda Constitucional 66/2010, deixou-se de discutir a culpa pelo fim do casamento, afastando a necessidade de preenchimento de qualquer requisito para a decretação do divórcio. “Todas essas alterações impactam a forma de atuação do Ministério Público, que atua em todas as demandas criminais e em boa parte dos casos envolvendo o Direito das Famílias”, salienta a coordenadora do CAO-VD. 

De acordo com ela, neste Dia Internacional da Mulher, é preciso refletir sobre os direitos conquistados, sobre os avanços alcançados e entender que a desigualdade não é mais legitimada e não deve ser tolerada. “O respeito é uma imposição permanente. Meninas e mulheres não podem ser revitimizadas”, afirma.  

Igualdade de gênero 

A promotora de Justiça Maria Constância Martins da Costa Alvim, da 6ª Promotoria de Justiça de Ibirité, na Região Metropolitana de Belo Horizonte, recorda que a Convenção Belém do Pará surge seis anos após a promulgação da Constituição Federal de 1988, em que a igualdade de gênero é estabelecida, reforçando a necessidade de ações para que essa isonomia seja alcançada. “Foi um marco muito importante e que trouxe novas percepções sobre as mulheres. Tivemos um progresso significativo em relação ao debate sobre o assunto e à produção de dados, além do avanço legislativo”, avalia.  

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A promotora observa, contudo, que, apesar dessas conquistas, a sociedade brasileira segue fortemente marcada pela violência contra o feminino. “Avançamos, mas não no ritmo que desejamos, porque nossa cultura ainda é extremamente machista e conservadora. Somos o quinto país que mais mata mulheres. Temos ainda muita dificuldade de levar a perspectiva de gênero para as outras áreas do direito”, observa. 

No dia a dia do Direito de Família, segundo Maria Constância, também fica evidente a discrepância dos papeis sociais entre homens e mulheres. “Vemos, todos os dias, os homens chegando à sala de audiência e manifestando que não querem assumir a responsabilidade pelos filhos com a guarda compartilhada. É uma grande dificuldade modificar a realidade desigual existente entre homens e mulheres”. 

Ainda segundo a promotora, é preciso que a violência contra as mulheres seja tratada como problema de toda a sociedade, e não como “assunto de mulher”. “É um problema que impacta na escolaridade, na economia, na saúde e em toda a sociedade e que, portanto, interessa a todos. Ele deve ser debatido, estudado e enfrentado. Enquanto for considerado assunto de mulher, não teremos o acesso à igualdade que buscamos e continuaremos falando para as mesmas pessoas”, alertou. 

Mudanças gradativas 

A promotora de Justiça Carla Regina Gourlart Salaro Duvanel, da 6ª Promotoria de Justiça de Governador Valadares, também comenta sobre transformações observadas no direito das mulheres desde que iniciou sua carreira como promotora, em 2005.  “Fiz diversos juris em que era utilizada a tese de legítima da defesa da honra para justificar o assassinato de mulheres, por traição. E, apesar de absurda, ela era acatada pelos jurados. Hoje, finalmente, ela não pode mais ser usada, com o reconhecimento da inconstitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal”, exemplifica.  

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Na percepção de Carla, as mudanças sociais se dão de forma gradativa e é preciso trabalhar continuamente para que elas aconteçam. “Não é algo rápido. Temos muito a conquistar ainda, mas já avançamos na busca pela equidade, com mais mulheres em cargos de chefia e na política também”, menciona.  

A promotora comenta ainda sobre as inúmeras dificuldades impostas pelo patriarcado à ascensão social das mulheres. “A maioria delas não consegue aceitar cargos de chefia em razão da sobrecarga de trabalho em casa. Quando o filho adoece, quem falta ao trabalho é a mulher, não o homem. Existe uma estrutura muito desigual, que precisamos desconstruir”, frisa. 

Brinquedoteca 

Segundo Carla, é preciso sensibilidade por parte das pessoas e das instituições para entender como a desigualdade de gênero afeta os vários setores da vida da mulher. “Muitas mulheres, ao vivenciarem situações de violência, vão até a Promotoria ou à Delegacia em busca de ajuda com seus filhos pequenos no colo e ficam inibidas ao ter que narrar, na frente deles, as violências sofridas”, conta. 

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Foi pensando nessa realidade que a 6ª Promotoria de Justiça de Governador Valadares criou, no mês passado, uma brinquedoteca, voltada ao acolhimento das mulheres e das crianças. O equipamento fica separado por um vidro na sala onde as mulheres são atendidas, permitindo o contato visual das mães com as crianças.  

De acordo com Carla, além de proporcionar um atendimento mais humanizado, a medida traz benefícios também para o sistema de Justiça, já que otimiza a escuta das mulheres e agiliza o procedimento. 

Conscientização 

Na opinião da promotora de Juliana Queiroz Ribeiro, que atua na 9ª Promotoria de Justiça de Juiz de Fora, com a intensificação dos debates sobre gênero nas últimas décadas e com os avanços legislativas verificados no país, as mulheres estão cada vez mais conscientes dos próprios direitos, o que, segundo ela, impulsiona a atuação das promotoras e dos promotores de Justiça. “Hoje, elas procuram mais as Promotorias de Justiça, as delegacias e os juizados especializados. Isso revela uma tomada de consciência considerável”.  

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No rol de avanços legislativos dos últimos anos, a promotora inclui também a Lei 14.245/2021, conhecida como Lei Mariana Ferrer, que protege vítimas de crimes sexuais em julgamentos, sendo elas predominantemente mulheres. “A violência institucional é uma realidade no sistema de Justiça, onde as mulheres também são, muitas vezes, intimidadas e culpabilizadas. Essa lei é muito importante porque prevê punição para atos contra a dignidade de vítimas de violência sexual e das testemunhas do processo durante o julgamento do processo”, salienta. 

Conforme a promotora, lidar com o machismo estrutural nos processos judiciais, nas salas de audiência e nos júris é muito desafiador. “A sociedade tende a culpabilizar a vítima pela violência sofrida, e a defesa busca explorar isso. São dificuldades de cunho moral. Em um júri, é preciso convencer os jurados, muitas vezes, de que não ter feito as tarefas domésticas não é justificativa para que uma mulher seja violentada”, exemplifica. 

Neste contexto, Juliana avalia como fundamental o papel do Ministério Público no combate à violência contra a mulher, não apenas pela punição dos agentes, mas, principalmente, pela interlocução feita entre os diversos atores da rede de atendimento às mulheres. “O MP tem esse papel de fomentar o diálogo, de aproximar esses sujeitos, e, com isso, ajuda na comunicação entre eles e no aprimoramento do fluxo de trabalho, trazendo resultados significativos para a sociedade”, pontua. 

Conforme a promotora, como a problemática da violência contra a mulher tem raízes culturais, a atuação do Ministério Público, com foco no diálogo, na educação, na promoção de direitos e no empoderamento das mulheres, é imprescindível.  

Ainda segundo ela, a análise das transformações ocorridas nos últimos anos no Brasil, quanto à questão de gênero, permite definir os esforços ainda necessários para que a tão desejada igualdade de direitos entre homens e mulheres seja alcançada. 

 

 

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